terça-feira, 3 de outubro de 2006

Com ou sem vergonha.

Quando tu ligou o carro pra sair o homem olhou sério para nós dois. Dentro daquele carro, numa hora tão alta da noite. Ele tinha um sorriso embotado como o teu. Ele olhava com as esferas afiadas da retina por dentro ou através de mim e de ti. Ele dizia silencioso para sairmos dali. Que ali não era lugar para tal sem-vergonhice. Então teus ouvidos atenderam a prece miúda e quieta daquele velho, tu ligou o carro e eu saí. Não sei se saí daquele carro azul para sempre. Tu dobrou a esquina e não me viu ficar parado diante do prédio olhando a luz vermelha de freio se enchendo no sinal. Até pensei que tu ias voltar e que a noite não acabaria ali, diante da minha casa descascada. Mas uma luz verde refletiu sobre teu carro e a vermelha se apagou e aos poucos vi teu carro azul sumir na escuridão da minha rua. Eu não vou entrar. Vou ficar aqui esperando tu voltar com esse sorriso preso dentro de ti. Porque há um sorriso embargado por aquele velho dentro de mim. Eu me sento aqui e espero por horas, dias se preciso. Mas hoje faz tanto frio e uma vozinha me diz que tu não voltas mais. Aquele velho insensível não viu que nos amávamos dentro daquele carro. Que havia a completa falta de vergonha, mas que nem de longe era vergonhoso.



Eu liguei o carro e tu saiu assim, sem mais nem menos, correndo. Aquele velho me fitava puto, com olhos de faísca. Tu saiu do carro e eu impulsivamente fui embora. Depois da esquina tinha um sinal. A luz verde explodiu tão rápido que eu não soube o que fazer. Fui adiante e só muito na frente tomei coragem para voltar e te dizer que aquele velho não podia nos boicotar. Eu olhava pelo retrovisor que tu esperava meu carro desaparecer. Dei muitas voltas nesse trânsito de becos e ruelas. Mas quando finalmente cheguei na tua casa tu não me esperava mais. Aquele velho filho da puta me gelou os ossos e fiquei com medo de te beijar ali, no carro mesmo. Que vergonha boba foi aquela de não te dizer que te amo e provar que o filho da puta é que estava errado. Não a nossa falta de vergonha. Quando parei o carro na frente do teu prédio o velho desgraçado me olhou mais severamente e de sopetão se lançou sobre o capô e deu a volta no carro. Com as duas mãos, num golpe rápido, me puxou e tascou um beijo. Aquele velho sem vergonha!

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