Quando eu piso em folhas secas.
“Nós, ou o número”.
“Nós, ou o número”.
Ele se admira com tudo. É uma habilidade incrível a de ver importância e sentido em coisinhas tão pequeninas. Mas nada o admira tanto quanto o fim. Aquele ponto exato onde as coisas acabam. Ele fica boquiaberto com o fim das coisas. Simplesmente o fascina. Pára diante de um animal morto, uma flor, um corpo e bebe um pouco daquela dor, morre um pouquinho também. Um dia ele abriu a janela do quarto e me disse que nas manhãs as coisas morrem mais lentas.
- Por quanto tempo cai uma folha de mangueira?
- Quem as acompanha?
- Vão sós?
- Às vezes sim, noutras eu as vejo gritando de dor.
- O que lhes dói?
Fechou a janela ríspido e se enfiou debaixo do cobertor. – Ainda não quero acordar. Tapou os olhos com a manta xadrez. Acho que quis ficar ali, pensando sobre as folhas e o fim de tudo, de todas as coisas. Encaixou-se na minha axila, destapando / mostrando os olhos e dizendo que não gosta das folhas secas, dos corpos caídos debaixo da copa das árvores. Caímos como as folhas dentro dos lençóis, nos enterramos na cama. Um ao outro. Somos quase tudo para nós mesmos. Não temos família ou antecedentes, criminais ou não. Na verdade acho que nem existíamos antes. Quando o encontrei comecei a existir. Não nasci, que vivo já estava, só não havia nada em mim. Era uma lata vazia de bolachas. Ele também. Moramos aqui desde então. O lugar era meu, mas dele já, porque sentou-se aqui como dono desde sempre. Aliás, nunca houve em nossas vidas, antes ou depois de nos conhecermos, o sentido de propriedade. Era só um lugar. Um teto de madeira velha pintada de branco que abrigava nossas coisas. Houve durante um tempo alguns quadros dele pendurados nas paredes. Ás vezes pintava, enchia a casa com cheiro de tinta e choro da Billie Holiday. A letra dizia alguma coisa “some day you’ll come alone, the man i love”. Não sei bem. Depois resolveu que eram péssimos, que não podiam ficar ali, pendurados, como se esperassem que um olhar distraído caísse sobre eles. Não sei o que aconteceu com aqueles quadros. Tinha um muito engraçado, que representava um peixe morto. O peixe era nosso, chamava Dick, - Sabe? Como Moby Dick. Foi homenagem póstuma. Um peixe qualquer. Qualquer peixe. Nos perdíamos na cama, Sem doces / azedos, claros / escuros. Sem muita distinção das coisas. Com uma fluidez frouxa, um caramelo derretido que escorre pelas coxas. Sem entendimento. Para isso, para que nos perdêssemos (um ao outro), era preciso que tirassem a roupa também os pudores e as mentiras, os outros todos, todo o resto. Tínhamos que nos embrenhar sós nos lençóis. Um e outro, um no outro. Os pés dele tinham o formato de um pão. Pés de pão. E tinha uma cara fechada, amarrada na sobrancelha. Também um olho frito, preso por cílios lisos. Negrumes afiados. Mas alguma coisa ficou suspensa entre as conversas, os cheiros. Uma tensão sobre assunto algum, uma coisa indefinida. Para mim foi o fim. De tudo. De dois. “Nós, ou o número”. Essa tarde eu decidi parar de fumar. Faz cinco horas/décadas agora. Eu traguei o último cigarro até o fim e parei. Foi difícil subir as escadas com essas malas todas, ainda que tenha parado de fumar, o pulmão nunca se recuperou, acho. Acho que ele estava infeliz, mas fui eu quem foi embora. Eu / ele me admiro tanto com o fim das coisas que essa nem foi de admirar. Eu vou embora. Sempre. Ele ficou parado diante do espelho por horas. Não falou uma palavra. Deixou que eu me arrumasse. Encontrasse as coisas. Não havia o que arrumar. Nada para empacotar. Só uns pedaços da memória (minha / nossa). Mas ele foi paciente, esperou que eu tivesse certeza de ter encontrado tudo que podia ser dissociado dele (tudo e nada). Então foi aí. Que decidi parar de fumar. Estava arrumando nada, e não havia lugar algum para ir. – Haveria mesmo outro lugar que existisse? Só houve aquele lugar e os móveis que ele não soube escolher. O sol não girava ali? Ou pelo menos em razão daquela sala? Tinha um corredor, tão estreito quanto uma artéria que passa pelo pescoço. E era meio vermelho de tão escuro. Foi ali, de qualquer jeito, que me instalei, como uma bromélia numa árvore. Como o sapo na bromélia. Nós dois não existíamos mais, só eu.
Por que se suicidam as folhas quando se sentem amarelas?
do livro das perguntas – Pablo Neruda.
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