terça-feira, 3 de outubro de 2006

Quarto-cais-cama.

A que horas tu chegas para comandar nossa cama-barco?
O dia brilhou quente, com frestas de luz e calor invadindo o quarto. Com alguma ou nenhuma chance de permanecer na cama. Foi aí, nesse instante ofuscado pela luz do dia, que meus pés se jogaram numa viagem lenta até o chão, chutando as latas e a sujeira num andar trôpego até o banheiro. A água gelada desconfigurando a imagem inchada dos olhos, a consciência fazendo o caminho de volta, o corpo reestruturando um equilíbrio que só é possível quando o sol bate na cara e desperta a existência diurna. Estar acordado. A que horas tu chegas para comandar nossa cama-barco? Trazendo sempre um veneno que apazigua as tempestades mais difíceis. A que horas zarpamos? Desse mundo do sol e das coisas que refletem suas cores? A que horas sai o barco-cama que desfoca todo o resto da casa e da vida? O cotidiano me veio depressa essa manhã. Os copos, pratos, o pó. Saí do veleiro que comandávamos e o cais estava sujo. Mas não importa, eu vou limpar, varrer e passar um pano. Vou colocar as bandeirinhas e uma escada. Para que quando tu voltes dos outros lugares que existem, caminhe triunfante pra nossa cama-tudo, que é tudo que realmente nos existe. Os pães e as fumaças não estão aqui, mas não vou sair, é arriscado demais. Morrer em outro lugar qualquer, que não aqui nesse tudo-nada que é nossa cama, é perigoso. O que tu usou para ir? Existe mesmo qualquer lugar que não esse? E a que horas volta? O cais está limpo novamente. Podes já voltar de qualquer outro lugar, que exista ou não, para cá, o único lugar que conheço, a cama-leito-jazigo. E o que vou fazer até o embarque? Não têm feiras nem turistas aqui. Só a cama-cofre. Nem sequer existem as coisas fora desse cais, elas só estão lá. O que existe é esse espaço-sala-de-espera, que é também o refúgio de tudo que é real. Tudo que realmente pode ser visto pelos nossos olhos. Só isso existe. A paisagem fora da janela é pintura, cenário. E a cama-cofre está pronta novamente, ansiosa de nós. Enquanto espero o embarque vou montando uma rota, imaginando as ondas no casco e o vento desolador. Mas tu trazes o veneno que tudo resolve. Separo alguns discos? Livros? Roupas de frio? Ah, vem logo que a espera é longa e solitária. Mas já anoitece nos outros lugares, logo tu vens e a cama-destino-partida nos encerrará em nós mesmos e no nosso mar inavegável. Penso que logo chega a hora de subir a bordo e dos apitos do navio-cama apitarem. Então, as tempestades de mar liso e os fluídos serão caminhos longos até uma outra manhã no único barco-cama-tempo que conhecemos.

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